
Um Anjo Chamado Uriel
CAPÍTULO 1
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A hora em que a saudade mais gosta de fazer visita é na madrugada... aqui neste leito, na UTI do Hospital das Clínicas, sem sono, fico absorto em pensamentos e lembranças, sendo interrompido de quando em vez, pela enfermeira, com algum tipo de cuidado. Estou ansioso pela próxima visita de Alice, já fazem dois dias que ela veio me ver e anseio desesperadamente por seu retorno. Principalmente depois do que aconteceu...
Lembro que eu queria muito voltar para Taubaté, retornar à minha rotina, pois não aguentava mais ficar aqui em São Paulo, entre consultas e exames, longe dos familiares e amigos.
Notícias sobre a recente morte de Elvis Presley, crise mundial do petróleo, inflação, governo do presidente Ernesto Geisel, já haviam saturado minha cabeça. Com dezesseis anos de vida, tudo o que me tira da realidade, é o que me encanta!
Quando meu pai estacionou o chevette na garagem, depois de jogar minhas coisas sobre minha cama, e tomar o bendito remédio que minha mãe implacavelmente não esquecia, corri para a casa da tia Neide.
Tia Neide na verdade, não era minha tia, mas era uma tia de coração. Apesar de trata-la assim, ela é tia mesmo, dos meus amigões Guto, Testa e Abdu. Ela era a mãe da Vilma e Rosa. E acrescentavam ainda a esta turma a Cristina, o Suiu e o Cardoso. Eu os tenho como se fossem a minha família. A casa da tia Neide era o nosso ponto de encontro, sinônimo de alegria e diversão. Ela sempre animada, preparava lanches e pipocas para assistirmos os seriados: As Panteras, A Ilha da Fantasia, Planeta dos Macacos e S.W.A.T. Organizava também bailinhos na garagem e excursões.
Assim como as estrelas, são os bons amigos, temos convicção que estão lá, ainda que nem sempre podemos vê-los! Alguns escolhem pessoas perfeitas, eu decidi escolher as que me fazem bem.
Quando cheguei foi aquela festa. Entre as perguntas de como eu estava e meu tratamento, rolavam as gozações e fofocas da turma toda. Tia Neide me abraçou, me beijou e com lágrimas nos olhos disse:
- Uriel meu filho, que saudade de você! Graças à Deus você está bem e de volta para o nosso convívio!
Quis saber mais sobre meu estado de saúde, resultados dos exames e se já havia algum diagnóstico preciso. Após minhas respostas, logo correu para fazer os maravilhosos bolinhos de chuva, que tanto adoro, enquanto discutíamos sobre que filme assistiríamos no cinema, pois uns queriam O Trapalhão Nas Minas Do Rei Salomão e outros Star Wars, Guerra Nas estrelas. Por fim ganhou Guerra nas Estrelas e marcamos o encontro para às 15h na casa da tia, é claro.
Um pouco antes do horário eu já estava lá, banho tomado, impecável com minha calça xadrez de boca de sino e sapato de salto. E para minha surpresa, havia uma menina diferente na sala. A presença daquela garota me desestabilizou. Fiquei parado, mudo, não conseguia tirar os olhos dela. Guto rapidamente me apresentou sua prima de São Paulo. Alice é linda e encantadora! Ela é mais baixa que eu, batia no meu peito, pele branquinha, cabelos castanhos escuros, bem curtinho, olhos lindos também castanhos escuros, dona de um sorriso arrebatador! Fiquei encantado por aquela princesa de doze anos de idade!
Em pouco tempo estavam todos na casa da tia Neide, e partimos para o cinema. No caminho eu já estava pensando em dar um jeito de sentar-me ao lado de Alice. Na bilheteria corri para comprar meu ingresso e o dela. Ela ficou surpresa quando lhe apresentei o bilhete, e me disse que estava com o dinheiro na mão para compra-lo, e meio encabulada, sorriu e agradeceu.
Procurei ficar bem próximo dela para sentarmos juntos. E consegui! Estávamos em 10, a turma se dividiu em duas fileiras. Em minha fileira ficaram: Guto, eu, Alice, Rosa e o Suiu. Mas o Suiu que estava na ponta, reclamou. Mudamos de lugar e nesta troca ele acabou sentando ao lado de Alice, e eu não. Então protestei e disse que aquele lugar estava horrível. Mudamos outra vez, e aí consegui sentar-me novamente ao lado de Alice. No entanto, Suiu bravejou outra vez, e nesta nova mudança, ele sentou junto de Alice e eu fiquei na ponta. Reclamei novamente, mas Rosa disse que não iria mais mudar de lugar, o Suiu endossou a decisão de Rosa. Foi aí que percebi que ele queria ficar ao lado de Alice também. Insisti na nova troca, mas foi inútil. Irritado eu falei que não ficaria ali, mas ninguém quis me acompanhar. Levantei para mudar de lugar, e o Guto para eu não ficar só, me acompanhou. Mas ficamos divididos, numa fileira Testa, Abdu, Vilma e Cristina. Na outra Rosa, Alice e o nó cego do Suiu. E em outra eu e o Guto. Minha raiva era tanta, que nem prestei atenção no filme. Guto percebeu que eu estava a fim da Alice, e que o Suiu também entrou na parada, e comentou comigo:
- Bicho você está nervoso, porque gostou da Alice e queria sentar junto dela, e o Suiu parece que também, não é isso?
Como eu ainda estava irritado, apenas consenti com um balançar da cabeça. Durante o filme, ele ainda comentou algumas coisas, mas mais nada sobre o assunto, pois ele me conhece muito bem, somos como irmãos.
Quando notei que o filme estava chegando ao fim, propus ao Guto sairmos antes das luzes acenderem. Ele topou, e foi o que fizemos. Rapidamente fomos embora, sem que o restante da turma percebesse.
Eu permanecia calado e o Guto para me animar, disse;
- Vou ajudar você a conquistar Alice!
Esta frase, me animou e fez com que eu passasse a conversar. Então perguntei:
- Porquê você nunca falou da sua prima para mim? Por que ela nunca veio para Taubaté antes?
- Fazia muito tempo que não víamos a família dela, e no carnaval deste ano, eles vieram nos visitar. Foi muito gostoso, Alice se divertiu muito, e como ela tem poucos amigos em São Paulo, desde então passou a vir para cá com mais frequência. Os pais dela fazem uma autorização, a leva até o embarque na rodoviária e nós a recebemos aqui. E na volta é a mesma coisa. Eu não falei nada, porque você estava mais em São Paulo, entre consultas e exames, do que aqui.
- Entendi. Mas agora quero conhece-la melhor!
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CAPÍTULO 2
No dia seguinte, logo depois do almoço, fui à casa da tia Neide, e lá estavam Alice, Guto, Testa, Abdu, Vilma e Rosa. Ainda bem que o chato do Suiu não estava. Ficamos todos sentados na varanda, brincando e rindo muito. Mas não tive oportunidade de conversar só com Alice. Num breve momento ela apenas me perguntou, porque não os esperamos na saída do cinema. Dissimulei ao dizer que não estava me sentindo bem e ao final do filme saímos rapidinho.
O bate papo fluía gostoso entre a turma e neste dia acertamos de no sábado seguinte fazer um baile na garagem. Sem nem pensar, virei-me para Alice e perguntei se ela viria. Ela sorriu e apenas balançou a cabeça afirmativamente.
Por volta das 3 horas da tarde, fui até a rodoviária acompanhar a tia Neide no embarque de Alice.
Logo na segunda-feira de manhã, minha mãe foi na escola para conversar com a diretora sobre meu caso. Eu já havia dito a ela que não importasse o tempo que levasse meu tratamento, sempre que fosse possível, eu iria para as aulas. Não que eu gostasse de estudar, é porque eu queria mesmo, era estar com meus amigos. E a boa notícia que ela me deu, foi que naquela noite mesmo, eu já poderia voltar a estudar.
Com o pensamento em Alice e a possibilidade de dançar com ela no sábado, mesmo indo para a escola a semana custou a passar. O grande barato daquela semana de aula foi na sexta-feira, quando o Cardoso chegou com um plano para acabar com as aulas, de forma que poderíamos ver os rachas que ocorriam, num bairro próximo, sem ficar com falta na chamada. Ele trouxe um fio grosso, num formato de forquilha e com as pontas desencapadas. E na outra ponta em que havia a dobra, ele fez um reforço da cobertura com fita isolante. E um pouco antes do professor chegar, o Cardoso enfiou as pontas desencapadas na tomada da sala de aula, a luz apagou na sequência e começou a sair fogo da tomada, assustado o Cardoso puxou o fio, mas a luz não voltou, inclusive toda aquela ala ficou no escuro. Suiu ficou preocupado do fogo ter queimado seu kichute novo. Depois de muita confusão, a direção decidiu dispensar os alunos. Vibramos com o sucesso do plano e fomos direto para ver os pegas.
Do morro onde estávamos a visão era privilegiada. Foi emocionante ver os rachas, entre um maverick e um opala, um passat com um corcel, e de alguns fuscas, fiat 147 e brasílias que também agitaram a noite. No entanto, meus pensamentos volta e meia estavam com Alice.
Finalmente chegou o sábado, passamos a tarde toda nos preparativos, enquanto arrumávamos o som e a iluminação na garagem, colocação de lonas e outras coisas, as meninas e a tia Neide cuidavam do ponche e salgados.
Alice chegou nesta arrumação toda, e nos cumprimentamos com um beijinho, sem conversarmos durante toda a tarde.
À noite, depois do banho, coloquei minha calça USTop e camisa Raphy novas, e corri para a casa da tia Neide.
O som já estava rolando com a presença de um bom número de convidados. Cumprimentei o pessoal, enchi meu copo de ponche e fiquei ali na garagem, batendo papo com o Guto e Testa. Quando eu vi Alice sair da sala, linda, num vestido branco que ia até os joelhos. Quando me viu apenas sorriu e ficou num canto conversando com Cristina e Rosa.
Aos poucos as músicas de Abba, David Bowie, Donna Summer, Elton John, Elvis Presley, The Commodores e outros, embalavam o nosso baile, mas quando começou a seleção de músicas lentas, eu tirei Alice para dançar. E ao som de On And On, do Stephen Bishop, o mundo parece ter parado. Com ela nos meus braços, rostinhos colados, aquela música dando o ritmo do amor, ali tive uma convicção, afastei meu rosto e deixei que meus olhos dissessem aos dela: Se eu tiver você, o resto será apenas um detalhe!
Dançamos toda seleção, e descobri que nos braços de quem amamos é o melhor lugar do mundo para estar!
Quando terminou a seleção, enfiei a mão no bolso, tirei um bilhete que deixei em sua mão. Ela só foi ler, dentro da casa, longe dos meus olhos. Nele escrevi: O que tem poder de marcar nossas vidas, não são as coisas bonitas, são as pessoas que possuem a magia de nunca serem esquecidas!
Depois disto, logo ao me ver, ela sorriu encabulada e agradeceu. Conversamos pouco naquela noite, mas dançar com ela, foi o suficiente para eu sonhar acordado a semana toda.
Tia Neide havia organizado uma excursão para Campos do Jordão, e eu a princípio não iria, mas quando soube que Alice havia feito sua inscrição, corri para fazer a minha. Felizmente ainda sobravam duas vagas e pude fazer minha reserva a tempo, pois a viagem seria no sábado seguinte.
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CAPÍTULO 3
Chegou o grande dia da excursão, fiquei atento e na hora de entrar no ônibus, entrei exatamente atrás de Alice e quando ela escolheu um assento, sentei-me ao seu lado. Fomos batendo papo a viagem toda, nos conhecemos um pouco mais, ríamos e nos divertimos, era um sonho. Antes de chegarmos em Campos, eu disse que tinha uma surpresa. Ela ficou ansiosa e disse para eu contar logo. Pedi que fechasse os olhos, ao que ela obedeceu prontamente. Coloquei um pequeno pacote em suas mãos, e feito criança, imediatamente abriu os olhos e o pacotinho. Seus olhos brilharam ao ver a fofolete. Ela ficou encantada e muito grata com a minúscula bonequinha.
Lá em Campos do Jordão fizemos vários passeios, em alguns deles, de mãos dadas, no Palácio da Boa Vista, Ducha de Prata, Pico de Itapeva. Entretanto foi no Morro do Elefante onde iríamos descer no teleférico, conversávamos tão descontraidamente, ela olhou dentro dos meus olhos sorrindo e eu num impulso, tentei beija-la na boca, e ela assustada me empurrou. Desequilibrei-me e cai para trás, virando o pé direito.
Alice ficou apavorada com meu tombo e tentou me ajudar a levantar, mas não consegui ficar de pé, porque doía muito. Ela passou a gritar chamando os meninos e a tia Neide, que vieram rapidinho. Levaram-me a um posto na administração, mas por conta da dor e do inchaço, providenciaram um carro e fomos direto ao hospital da cidade. Depois do exame clínico e uma radiografia, constatou o que já imaginávamos, meu pé estava quebrado, e em pouco tempo engessado.
Tirando o beijo que não ganhei, este acidente teve um lado positivo. Ela chegou até a chorar chateada com o que aconteceu, pediu-me desculpas várias vezes e ficou todo tempo comigo. E eu amei isto tudo! Se a vida é cheia de escolhas, numa dessas escolhi Alice!
Durante a semana ela ligou para saber como eu estava. E no final de semana seguinte veio até minha casa. Tivemos a oportunidade de nos conhecermos ainda mais. Logo que chegou ela disse:
- Uriel você é um anjo!
- Um anjo? – Indaguei – Porque você acha isto?
- Você tem nome de anjo! Uriel significa o Senhor é minha luz. É bonito como um anjo. Tem o cabelo loiro e ondulado até os ombros, olhos verdes, alto, magro.
Cheio de ternura você entrou na minha vida, e está inocentemente desabrochando meu coração numa meiga aventura. Cobre meus dias de carinho, amor, com intensão clara de me trazer felicidade! Você me faz ter sonhos loucos, faz com que eu solte meus medos aos poucos. Um brilho especial encontro no seu olhar, um convite para o amor para entrar.
Fiquei mudo! Perplexo com o que acabara de ouvir! E sem saber o que fazer ou falar, perguntei:
- Em que bairro mora em São Paulo? - Ao que ela respondeu.
- Moro no Tatuapé, você conhece?
- Não – Respondi rindo - Em São Paulo, só conheço o Hospital das Clínicas, alguns consultórios médicos, laboratórios, e alguma coisa em Pinheiros, onde mora minha tia, onde ficamos quando lá estamos.
- Uriel o que você tem? Perguntei ao Guto e para a tia Neide, o que você tem, mas eles enrolaram e não responderam.
- Leucemia - Respondi sem fazer média.
Alice ficou séria e imóvel, sem conseguir esconder a expressão de surpresa. Depois de um instante, que pareceu uma eternidade, para quebrar o gelo ela me perguntou:
- Já ouvi falar de leucemia, mas eu não sei ao certo, o que é. Você me explica?
- Lógico – com naturalidade passei a falar – A leucemia é um câncer maligno – Alice arregalou os olhos, mas continuei a explicação - As células sanguíneas são produzidas na medula óssea, e os glóbulos brancos são as células atingidas, provocando uma reprodução descontrolada, o que provoca os sintomas e sinais desta doença. Existem duas categorias, a mielóide e a linfóide. A mielóide é derivada da célula-tronco e na linfóide, o linfócito é a célula doente. Tem também a classificação que leva em conta a velocidade de divisão dessas células. Quando ela é rápida, é chamada leucemia aguda; quando é lenta, é chamada leucemia crônica. A crônica se desenvolve vagarosamente e as células envolvidas são parecidas com as células normais, e os pacientes conseguem manter algumas funções normais no organismo. Agora por outro lado, a aguda progride rapidamente, atacando células que ainda nem foram formadas, destruindo a defesa do organismo e suas funções.
Alice que me ouvia atentamente, perguntou:
- E você já sabe qual destes tipos é a que afetou você?
- Sei – Respondi com a mesma segurança - Leucemia linfoide aguda. Quando as células-tronco que dão origem ao sangue sofrem alterações, afetam diretamente as partes responsáveis por combater infecções, a oxigenação do organismo e o impedimento de hemorragias.
- Anjo você até parece um médico falando – disse Alice esboçando um tímido sorriso.
- Eu e meus pais nos tornamos especialistas em Leucemia.
- E como seus pais estão reagindo a isto tudo?
- Eles são meu porto seguro, me apoiam e me encorajam constantemente. Não sei como agradecer tanto amor e dedicação. Mas sei que longe de mim eles estão arrasados. Olhei bem dentro dos olhos dela e falei.
– Alice aprendi que devemos amar e demonstrar este amor aos nossos pais, porque ninguém nos ama mais do que eles, eles são nossa vida, eles são únicos, e também aos nossos amigos, pois os verdadeiros amigos são raros.
- A turma sabe da gravidade? Eles têm lhe dado apoio?
- Sim eles sabem, e principalmente o Guto, Testa, Abdu, a tia Neide, Vilma e Rosa têm me dado muita força!
- Puxa que bom que eles estão ao seu lado!
- Alice se você quiser saber quem são seus amigos é preciso passar pelo sucesso, assim você saberá a quantidade. E também passar pela desgraça, assim você saberá dentro da quantidade, quais sãos os amigos de qualidade.
- Caramba...
- E eu posso lhe garantir... que amigos de qualidade são poucos... são raros!
- Uriel você é forte!
- Quando ser forte é a sua única opção, então descobrimos o quão forte somos!
Para quebrar aquela conversa, que eu sabia que estava tensa, peguei um caderno que estava numa pequena escrivaninha e tirei de dentro dele, um pequeno envelope, que entreguei a ela. Que ansiosa rapidamente abriu e retirou um pequeno papel, que continha um acróstico:
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Amo te agora,
Lembre-se disto,
Indo ao teu encontro,
Contigo sonharei
Eternamente...
- Que lindo Uriel! Eu gosto muito de receber seus bilhetes...
- Sem querer lhe conheci, mas terminei lhe querendo!
Seu rosto avermelhou na hora, mas ela disfarçou dando um beijo no meu rosto! E aí quem ficou vermelho foi eu, só que eu não soube disfarçar, e depois de um bom tempo mudo, sem saber o que falar, perguntei:
- Você gostou da música Arrombou a Festa da Rita Lee?
- Gostei – Respondeu, percebendo meu constrangimento – Mas eu prefiro I Never Cry, Alice Cooper.
A resposta dela nos descontraiu e ficamos um bom tempo conversando.
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CAPÍTULO 4
Quanto mais o tempo passava, entre os sintomas da leucemia, a anemia foi a que mais judiava. As tonturas, cansaço, sonolência, falta de apetite e consequente emagrecimento, deixava-me cada vez mais debilitado. O que fez com os médicos acelerassem o início da quimioterapia.
Para evitar a tristeza de ver meu cabelo caindo, deram-me a sugestão para raspar a cabeça antes. Meu pai antecipou-se e raspou a dele primeiro, para dar-me apoio. Guto, Abdu e o Testa também decidiram rapar a cabeça junto comigo. Tentei a todo custo faze-los desistirem da ideia, mas foi em vão... ficamos todos carecas! Eles faziam com que tudo isso fosse um grande barato, tudo era motivo para brincadeiras e gozações.
Nós temos três escolhas quando a vida nos surpreende com situações desagradáveis: permitir que isso o destrua, permitir que isso o defina ou permitir que isso o torne mais forte. Eu escolhi essa última opção, principalmente com a força e o amor que vem da minha família, dos meus verdadeiros amigos e do carinho e atenção que recebo de Alice.
Logo após minha primeira sessão de quimioterapia, Alice foi me ver. Eu ainda estava nauseado e havia vomitado muito. Ela ao perceber que eu não estava bem, quis ir embora, mas não a deixei ir. A presença dela só me faz bem! Nas voltas em que a vida dá, descobri que no fundo, o que você procura mesmo é encontrar alguém para lhe dizer: quero ficar só com você!
A presença dela me faz muito bem! E em pouco tempo era nítida minha melhora. Ela ficou mais à vontade e a conversa fluiu sem a tensão da anterior, quando contei da leucemia.
- Dr. Uriel quais sãos as causas da leucemia? Perguntou ela brincando.
- A multiplicação descontrolada da mesma célula, faz com que ocorra o câncer. – Rindo, respondi impostando a voz - Naqueles tipos de leucemia que lhe falei, acontecem uma alteração genética nas células, que faz com que haja uma divisão delas, que desligam os genes que irão extinguir o tumor.
- E quais são os sintomas?
- Infecção, anemia e hemorragia são os sintomas mais comuns. Os sintomas que estou sentindo, são de uma síndrome anêmica, emagrecimento, tontura, cansaço, dor de cabeça e outros bichos...
- Puxa anjo, não é fácil, né?
- Alice tenho aprendido que, se desistir é a opção mais fácil, então devo insistir, porque insistir vale muito mais a pena!
- Vejo sua superação!
- No meu caso, superar é necessidade, não é escolha.
Enquanto refletia em minhas palavras, ela passava carinhosamente a mão em minha nuca. Então eu prossegui:
- Se eu estivesse cabeludo, não iria sentir este chamego gostoso na careca...
Ela gargalhou e disparou:
- Com tudo isso você ainda ri e me faz rir?
- Independente das circunstâncias, não vou parar de rir!
- Anjo, que a amargura das pessoas, jamais atrapalhem você de espalhar ternura. – Desejou-me sinceramente.
- Felicidade não são somente os momentos de alegria que vivemos. É necessário disposição e sabedoria para enfrentar a tristeza e tornar adversidades em aprendizado.
- Você não sente medo?
- Sinto, mas é do outro lado do medo está tudo o que quero.
- Anjo, você parece um adulto falando!
Ela disse expressando orgulho. E eu vibrei de alegria com esta ideia. E ela prosseguiu.
- Apesar do desconforto da quimioterapia, o mais importante é que logo logo, você estará curado.
- Alice eu terei que fazer um transplante de medula. – Não quis esconder nada dela.
- Porquê? Só a quimioterapia não é o suficiente?
- No meu caso, não!
- E como é isso?
- O transplante de células tronco é basicamente substituir a medula óssea saudável pela cancerosa. Para restaurar a medula é necessária infundir células tronco.
- E quando será esta cirurgia?
- Já está sendo feito vários exames com este objetivo, mas ainda não tem data marcada. Entretanto, as sessões de quimioterapia devem continuar até que a medula óssea doente seja destruída.
Quando terminou a visita, ela veio beijar meu rosto, então tirei debaixo do travesseiro um bilhetinho, coloquei-o em sua mão e eu mesmo a fechei, para que ela lesse somente depois. Ganhei novamente aquele sorriso lindo e ela saiu. De certo ela deve ter aberto imediatamente ao sair do quarto. Nele eu escrevi: No silêncio do seu olhar, é que são ditas as mais lindas palavras de amor!
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CAPÍTULO FINAL
Piorei significativamente nas semanas seguintes. A anemia aumentou e como consequência deixou-me ainda mais debilitado. A quimioterapia precisou ser suspensa, pois eu não suportaria.
Confesso que eu estava muito triste... apesar de todo apoio recebido, ver o sofrimento estampado no rosto dos meus pais, sangrava meu coração... tanto amor... meu Deus, como eles me amam... não os deixe sofrerem assim...
E por falar em amor, tia Neide e os meninos vieram me visitar, as meninas tinham vindo no dia anterior. A tia trouxe escondido um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate, hummmmm... estava gostoso e foi a única coisa que me esforcei para comer naquele dia.
Tia Neide estava nervosa e meus amigos rachavam o bico de tanto rir. Então me contaram a travessura. Pouco depois de entrarem no hospital, Abdu encontrou sobre um carrinho dois aventais e uma prancheta. E disse aos seus irmãos.
- Doutores os senhores deixaram seus aventais aqui?
- Dr. Guto olha onde deixaram nossos aventais? – Disse Testa sugerindo uma brincadeira.
- Que bom que encontramos doutor. – Completou Guto - Agora o Dr. Testa pode dar alta a todos os pacientes deste hospital, porque eles já estão de saco cheio de ficarem aqui!
- Perfeito Dr. Guto, então vamos dar alta para esta cambada toda!
Testa e Guto vestiram os aventais, e Abdu deu a prancheta para o Testa. Eles rapidamente entraram por uma porta de emergência e subiram correndo as escadas, deixando a tia para trás e sem saber para onde eles iam. Logo os três passaram a entrar de quarto em quarto, dizendo aos pacientes que eles estavam curados e já iam solicitar a alta de cada um deles. Segundo eles, os pacientes perceberam logo que tratava de uma brincadeira, e descontraídos também se divertiram. Menos a tia Neide que ao encontra-los, deu-lhes uma bronca daquelas e pôs fim a alta generalizada dos doutores Guto e Testa. Rimos muito com os detalhes desta armação e eles só lamentaram, o fato de eu não estar junto! Eu também lamentei dessa vez não estar com eles, pois sempre participei de todas essas presepadas.
Apesar das boas risadas que dei com a turma, só nos pensamentos em Alice encontro alguma força, algum ânimo. Tenho ouvido muitas pessoas falando sobre amor, no entanto, tenho visto pouquíssimas que sabem amar. Não me recordo onde, mas em algum lugar eu li, “O amor é a única loucura de um sábio e a única sabedoria de um tolo. ” Então nesse aspecto, sou sábio, sou tolo!
No dia seguinte, o Dr. Renato, médico responsável pelo meu tratamento, chamou meus pais para conversar. No estado precário em que me encontrava, imaginei que não teríamos boas notícias.
Estes pensamentos negativos foram plenamente dissipados, quando Alice adentrou o quarto. Com um sorriso mágico, ela encheu aquele ambiente de alegria e paz.
- Depois de ver este sorriso lindo, tenho certeza que vou receber alta.
- Você anjo, é este sorriso!
- Eu sempre quis ser um sorriso na vida de alguém! - Respondi enfaticamente.
Conversamos sobre algumas trivialidades, falei da visita da tia Neide e dos meninos. Contei com detalhes o que eles aprontaram no hospital e rimos despretensiosamente.
Segurei naquelas mãos lindas, branquinhas, delicadas, e olhando dentro daqueles olhos castanhos escuros, abri meu coração.
- Não estou nada bem. Piorei muito nesta semana, encontro-me tão extenuado, ao ponto de interromperem as sessões de quimioterapia. Meus pais estão agora com o médico, confesso que não estou esperando boas notícias.
- Tenha fé, vai dar tudo certo! Quero vê-lo com mais frequência e acompanhar ainda mais de perto a sua recuperação.
- Fico-lhe muito grato, realmente preciso da sua companhia. – Sem medo ou timidez, declarei meu amor. - Eu não posso mesmo viver sem sua presença. Meu coração estava com a porta aberta e sem aviso algum você entrou e tomou conta. Menina esse seu jeito inocente é a medida certa da minha felicidade. Com sua meiguice e simplicidade, levou-me a viver a plenitude do mais sublime dos sentimentos, o amor!
- Anjo você é especial e me ensinou tantas coisas. Como o valor dos pequenos acontecimentos, que não valorizamos em nosso dia a dia. - Disse num tom ainda mais carinhoso.
- Viver um grande amor, ultrapassa qualquer razão, qualquer entendimento. Respondi.
Olhos nos olhos e ela foi inclinando-se lentamente em minha direção, deitado naquele leito, eu a desejava, mas não acreditava no que estava acontecendo, fechei os olhos e passivamente deixei rolar...
Alice me beijou! Foi um beijo longo, gostoso, esperado, muito aguardado!
Ela quando se afastou, estava com o rosto avermelhado, denunciando seu total acanhamento, diante da própria iniciativa. Eu olhando bem dentro dos olhos dela, falei.
- Se haverá amanhã eu não sei, mas você já fez o hoje valer a pena!
Ela sorriu, e para disfarçar, disse que ainda voltaria durante a semana para me ver. Entreguei-lhe um novo bilhete, que estava escrito:
Seu amor me leva a ser mais do que sou,
Não existe outra razão para mim.
Menina, você terá em mim um amigo eterno,
Não acredite nesse mundo, porque ele nunca nos dará o paraíso.
Quando a luz da juventude parecia estar indo embora,
Passei a amar você e não conheço amor melhor.
Enquanto você estiver comigo, não a deixarei triste,
Quero estar ao seu lado, sempre que precisar.
E quando eu não puder fazer parar a tempestade,
Meus braços lhe envolverão, até dissipar o medo.
Viverei eternamente para cuidar de você,
Porque eu a amo profundamente!
E homem nenhum na face desta terra, lhe amará como eu!
Você parece não entender isso...
O modo como eu a amo!
Só você conhece a porta da minha alma,
Em minhas horas de trevas, você é a minha luz,
Quando eu caio, só a sua mão tem o poder de me levantar.
Nestes momentos, você pode até pensar o contrário, mas acredite, eu me importo com você!
Como uma brisa suave, sopro da natureza, você vem e me alivia...
Mas também da mesma forma, não sei porque, você se vai...
Seu anjo Uriel!
Ela pediu para que eu ficasse bem, deu-me um novo beijo, dessa vez foi rápido e um leve tocar de lábios e saiu, decerto para ler meu bilhete ainda no corredor.
Eu estava sonhando acordado com o que havia acabado de acontecer, quando meus pais parecendo zumbis, entraram no quarto e me disseram, que o Dr. Renato, explicou como meu caso havia se agravado, e que eu teria que ser transferido imediatamente para a UTI.
Na UTI vários procedimentos foram realizados, novos exames solicitados, não faltaram esforços e dedicação para meu restabelecimento. No entanto eu sentia que meu corpo não correspondia mais as expectativas de melhora.
Precisei ser entubado e receber uma sonda para ser alimentado. O tempo estava passando e todos esforços pareciam apenas paliativos.
Por isso no início eu disse... A hora em que a saudade mais gosta de fazer visita é na madrugada... aqui neste leito, na UTI do Hospital das Clínicas, sem sono, fico absorto em pensamentos e lembranças, sendo interrompido de quando em vez, pela enfermeira, com algum tipo de cuidado. Estou ansioso pela próxima visita de Alice, já fazem dois dias que ela veio me ver e anseio desesperadamente por seu retorno. Principalmente depois do que aconteceu...
Creio que hoje ela virá me visitar, minha fraqueza só aumenta e também a dificuldade para respirar, a movimentação ao meu redor aumentou, o barulho deste aparelho apitando aceleradamente está me irritando, pim... pim... pim, emergência! Gritou alguém, preciso ver Alice, preciso novamente daquele olhar... doutor... diziam num tumulto que eu não entendia... será que Alice está para chegar...
Quando eu me encontrar com ela vou dizer: O verdadeiro amor não tem final feliz, porque amor verdadeiro não tem fim, é eterno!
A agitação ao meu redor continuava, mas exatamente agora, o barulho irritante da máquina mudou, ficou num longo... pimmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm...
Ah... que alívio estou bem... estou de alta... que paz... não estou mais entubado e nem com aqueles aparelhos ligados a mim... Alice? Quem bom você aqui! Veja este lindo jardim... vamos passear por ele... aquela luz... Alice preciso ir até aquela luz... preciso ir até lá... vamos Alice? Porque você não vem comigo? Vem Alice... vem... mas eu preciso ir até lá...
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Valter Rocha #contosqueemocionam
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Nota do Autor: Felizmente hoje em dia, com o avanço da tecnologia e da ciência, é possível conviver com a leucemia. Em seus 4 tipos a cura pode ocorrer. A leucemia não é mais uma sentença de morte.



